
Quem cuida da saúde mental precisa, antes de tudo, cuidar da sua própria. Essa frase pode soar como senso comum, mas na formação em Psicologia ela ganha um peso especial. A experiência pessoal em psicoterapia é, para muitos estudantes e profissionais, um divisor de águas — algo que transforma sua forma de ver a si mesmo, o outro e a própria profissão.
Mas por que isso acontece? O que muda quando um futuro psicólogo passa ele mesmo pela experiência da psicoterapia?
Foi exatamente isso que buscou investigar o estudo de Kichler e Serralta (2014). O artigo explorou não só quantos estudantes em estágio profissional estavam em psicoterapia, mas também o que eles vivenciaram nesse processo e como isso impactou suas trajetórias pessoais e profissionais.
Uma prática valorizada, mas pouco investigada
Ao longo da história da formação em Psicologia, muito se discutiu sobre a importância da psicoterapia pessoal para quem deseja atuar como psicoterapeuta. Em muitas abordagens — especialmente nas de orientação psicodinâmica — essa prática é considerada quase indispensável. O pressuposto é simples: para compreender a dor do outro, é preciso primeiro ter enfrentado a própria. Ainda assim, eram poucos os estudos no Brasil que investigavam, de forma sistemática, o impacto dessa vivência na formação profissional.
O que este estudo quis entender e o percurso metodológico
Este estudo buscou verificar a proporção de estudantes de Psicologia em Estágio Profissional que realizam psicoterapia pessoal e compreender o que muda — na vida pessoal e na formação profissional desses estudantes — ao vivenciarem a psicoterapia.
A pesquisa foi conduzida em duas etapas: uma quantitativa e outra qualitativa. Na primeira fase, 54 estudantes responderam a um questionário com perguntas sobre sua percepção acerca da importância da psicoterapia pessoal para a formação em Psicologia. Essa etapa permitiu identificar o número de estudantes que já haviam feito ou estavam fazendo psicoterapia, e suas opiniões a respeito.
A segunda etapa foi mais aprofundada. Quatro estudantes em psicoterapia, que se mostraram disponíveis, participaram de entrevistas individuais que foram gravads e depois transcritas. Eles contaram, com suas próprias palavras, como essa vivência os afetou: o que aprenderam sobre si mesmos, como isso influenciou sua forma de compreender a clínica e de se imaginar como terapeutas.
Os dados foram analisados com base na análise de conteúdo, uma técnica que busca compreender o significado das experiências vividas. A ideia era ir além dos números: escutar profundamente o que significa, para um futuro psicólogo, ocupar o lugar de paciente.
O que muda quando o futuro terapeuta é paciente
Os resultados apontaram que 84,7% dos alunos estavam fazendo ou já haviam feito psicoterapia. Quase a totalidade destes (98,3%) consideravam a psicoterapia pessoal muito ou extremamente importante para o formação do psicólogo.
O conteúdo das entrevistas da etapa qualitativa foi organizado em quatro temas que revelam a experiência transformadora da psicoterapia pessoal na vida pessoal e profissional dos estudantes.
A decisão de buscar de ajuda
Sobre o contexto da busca por psicoterapia, os estudantes relataram que a decisão de iniciar psicoterapia estava associada a vivências de sofrimento pessoal, como dificuldades emocionais e conflitos interpessoais. No entanto, o estudo revelou algo mais específico: a motivação para buscar ajuda emergiu, em grande parte, das demandas e expectativas despertadas no momento do estágio clínico. Ou seja, ao começarem a atender pacientes, esses estudantes se depararam com situações que os desafiaram emocionalmente e os fizeram refletir sobre seus próprios limites e vulnerabilidades. A psicoterapia foi procurada, então, como um recurso tanto de cuidado pessoal quanto de suporte formativo, diante das exigências práticas e subjetivas do trabalho clínico.
Olhar para si transforma
Ao relatarem os efeitos da psicoterapia pessoal, os estudantes enfatizaram o impacto profundo que esse processo teve em seu autoconhecimento e crescimento pessoal. Fazer psicoterapia foi mais do que buscar ajuda para resolver questões pessoais: foi também um passo decisivo para se tornar um profissional mais preparado. Eles relataram que conhecer a si mesmos, com a ajuda de um terapeuta, foi fundamental para compreender melhor suas emoções, reconhecer seus próprios limites e desenvolver a escuta clínica. Como expressou uma das entrevistadas, é preciso saber o que se pode ou não escutar do outro — e isso começa com a capacidade de escutar a si mesmo.
Nesse sentido, a psicoterapia pessoal não apenas auxiliou no crescimento individual, mas foi vista como uma etapa essencial da formação clínica — um espaço onde os futuros psicólogos puderam vivenciar eles mesmos aquilo que mais tarde estariam oferecendo aos outros.
Do outro lado da cadeira: aprendizados sobre a escuta e o cuidado
A experiência reverberou diretamente na formação profissional. A categoria escuta clínica e prática profissional revela como esses estudantes passaram a enxergar o ambiente terapêutico com outros olhos. Relataram maior empatia com os pacientes e mais sensibilidade para o sofrimento alheio. A vivência pessoal da psicoterapia os ajudou a entender na prática o que significa ser escutado — e como isso transforma o modo de escutar o outro.
Os participantes relataram que, ao vivenciar o papel de quem fala e se expõe, passaram a entender mais profundamente a responsabilidade que terão, como futuros psicólogos, ao acolher alguém em sofrimento. A experiência na psicoterapia pessoal também provocou reflexões sobre o manejo dos sentimentos que surgem no terapeuta durante o atendimento e que podem interferir (positiva ou negativamente) na relação com o paciente. Ter vivido esse processo como paciente favoreceu a consciência sobre essas reações internas e a importância de saber reconhecê-las para que não se tornem um obstáculo à prática clínica.
Aprender na pele: quando a experiência ensina mais que o livro
Mais do que entender teorias ou técnicas, os estudantes relataram que a psicoterapia pessoal ofereceu um tipo de aprendizado que só a vivência pode proporcionar – aprendizagem através da experiência. Estar no lugar de paciente os ajudou a perceber como se sentem aqueles que procuram ajuda — suas angústias, resistências, medos e esperanças. Essa experiência foi descrita como uma espécie de laboratório emocional, no qual foi possível experimentar o que significa confiar em alguém, revelar-se, sentir-se acolhido e lidar com situações difíceis.
Essa aprendizagem experiencial não substitui o conhecimento teórico, mas o complementa e o torna mais real. Os participantes afirmaram que, depois de viverem a psicoterapia pessoal, passaram a compreender melhor os conteúdos discutidos nas aulas — agora não apenas com a mente, mas com de modo integral.
O que o estudo nos ensina
Se você é estudante ou profissional da Psicologia, talvez já tenha se perguntado: “Preciso fazer psicoterapia para ser um bom terapeuta? ” Essa pesquisa sugere que a resposta, embora não obrigatória, pode ser sim — pelo menos se você deseja exercer a profissão com mais consciência, profundidade e humanidade.
O estudo mostrou que estar em psicoterapia ajuda o futuro psicólogo a reconhecer seus próprios limites, a manejar melhor as emoções despertadas pelos atendimentos e a se posicionar com mais ética e responsabilidade diante do sofrimento alheio.
O tratamento pessoal para o psicólogo que vai exercer psicoterapia é parte essencial da sua formação. A experiência da psicoterapia pessoal permite que futuros psicólogos conheçam seus próprios pontos cegos, compreendam os limites da escuta e enfrentem os obstáculos que podem, sem querer, interferir na clínica. E talvez seja justamente esse percurso de cuidado e coragem que torne um psicólogo verdadeiramente capaz de acolher o sofrimento alheio.
Referência
Kichler, G. F., & Serralta, F. B. (2014). As Implicações da Psicoterapia Pessoal na Formação em Psicologia. Psico, 45(1), 55–64. https://doi.org/10.15448/1980-8623.2014.1.12531