Por Que o Psicólogo Também Precisa de Psicoterapia?

Fernanda Barcellos Serralta – Psicóloga, Psicoterapeuta Psicodinâmica, Dra. em Ciências Médicas: Psiquiatria (UFRGS)

Quem cuida da saúde mental precisa, antes de tudo, cuidar da sua própria. Essa frase pode soar como senso comum, mas na formação em Psicologia ela ganha um peso especial. A experiência pessoal em psicoterapia é, para muitos estudantes e profissionais, um divisor de águas — algo que transforma sua forma de ver a si mesmo, o outro e a própria profissão.

Mas por que isso acontece? O que muda quando um futuro psicólogo passa ele mesmo pela experiência da psicoterapia?

Foi exatamente isso que buscou investigar o estudo de Kichler e Serralta (2014). O artigo explorou não só quantos estudantes em estágio profissional estavam em psicoterapia, mas também o que eles vivenciaram nesse processo e como isso impactou suas trajetórias pessoais e profissionais.

Uma prática valorizada, mas pouco investigada

Ao longo da história da formação em Psicologia, muito se discutiu sobre a importância da psicoterapia pessoal para quem deseja atuar como psicoterapeuta. Em muitas abordagens — especialmente nas de orientação psicodinâmica — essa prática é considerada quase indispensável. O pressuposto é simples: para compreender a dor do outro, é preciso primeiro ter enfrentado a própria. Ainda assim, eram poucos os estudos no Brasil que investigavam, de forma sistemática, o impacto dessa vivência na formação profissional.

O que este estudo quis entender e o percurso metodológico

Este estudo buscou verificar a proporção de estudantes de Psicologia em Estágio Profissional que realizam psicoterapia pessoal e compreender o que muda — na vida pessoal e na formação profissional desses estudantes — ao vivenciarem a psicoterapia.

A pesquisa foi conduzida em duas etapas: uma quantitativa e outra qualitativa. Na primeira fase, 54 estudantes responderam a um questionário com perguntas sobre sua percepção acerca da  importância  da  psicoterapia  pessoal para a formação em Psicologia. Essa etapa permitiu identificar o número de estudantes que já haviam feito ou estavam fazendo psicoterapia, e suas opiniões a respeito.

A segunda etapa foi mais aprofundada. Quatro estudantes em psicoterapia, que se mostraram disponíveis, participaram de entrevistas individuais que foram gravads e depois transcritas. Eles contaram, com suas próprias palavras, como essa vivência os afetou: o que aprenderam sobre si mesmos, como isso influenciou sua forma de compreender a clínica e de se imaginar como terapeutas.

Os dados foram analisados com base na análise de conteúdo, uma técnica que busca compreender o significado das experiências vividas. A ideia era ir além dos números: escutar profundamente o que significa, para um futuro psicólogo, ocupar o lugar de paciente.

O que muda quando o futuro terapeuta é paciente

Os resultados apontaram que 84,7% dos alunos estavam fazendo ou já haviam feito psicoterapia. Quase a totalidade destes (98,3%) consideravam a psicoterapia pessoal muito ou extremamente importante para o formação do psicólogo.   

O conteúdo das entrevistas da etapa qualitativa foi organizado em quatro temas que revelam a experiência transformadora da psicoterapia pessoal na vida pessoal e profissional dos estudantes.

A decisão de buscar de ajuda

Sobre o contexto da busca por psicoterapia, os estudantes relataram que a decisão de iniciar psicoterapia estava associada a vivências de sofrimento pessoal, como dificuldades emocionais e conflitos interpessoais. No entanto, o estudo revelou algo mais específico: a motivação para buscar ajuda emergiu, em grande parte, das demandas e expectativas despertadas no momento do estágio clínico. Ou seja, ao começarem a atender pacientes, esses estudantes se depararam com situações que os desafiaram emocionalmente e os fizeram refletir sobre seus próprios limites e vulnerabilidades. A psicoterapia foi procurada, então, como um recurso tanto de cuidado pessoal quanto de suporte formativo, diante das exigências práticas e subjetivas do trabalho clínico.

Olhar para si transforma

Ao relatarem os efeitos da psicoterapia pessoal, os estudantes enfatizaram o impacto profundo que esse processo teve em seu autoconhecimento e crescimento pessoal. Fazer psicoterapia foi mais do que buscar ajuda para resolver questões pessoais: foi também um passo decisivo para se tornar um profissional mais preparado. Eles relataram que conhecer a si mesmos, com a ajuda de um terapeuta, foi fundamental para compreender melhor suas emoções, reconhecer seus próprios limites e desenvolver a escuta clínica. Como expressou uma das entrevistadas, é preciso saber o que se pode ou não escutar do outro — e isso começa com a capacidade de escutar a si mesmo.

Nesse sentido, a psicoterapia pessoal não apenas auxiliou no crescimento individual, mas foi vista como uma etapa essencial da formação clínica — um espaço onde os futuros psicólogos puderam vivenciar eles mesmos aquilo que mais tarde estariam oferecendo aos outros.

Do outro lado da cadeira: aprendizados sobre a escuta e o cuidado

A experiência reverberou diretamente na formação profissional. A categoria escuta clínica e prática profissional revela como esses estudantes passaram a enxergar o ambiente terapêutico com outros olhos. Relataram maior empatia com os pacientes e mais sensibilidade para o sofrimento alheio. A vivência pessoal da psicoterapia os ajudou a entender na prática o que significa ser escutado — e como isso transforma o modo de escutar o outro.

Os participantes relataram que, ao vivenciar o papel de quem fala e se expõe, passaram a entender mais profundamente a responsabilidade que terão, como futuros psicólogos, ao acolher alguém em sofrimento. A experiência na psicoterapia pessoal também provocou reflexões sobre o manejo dos sentimentos que surgem no terapeuta durante o atendimento e que podem interferir (positiva ou negativamente) na relação com o paciente. Ter vivido esse processo como paciente favoreceu a consciência sobre essas reações internas e a importância de saber reconhecê-las para que não se tornem um obstáculo à prática clínica.

Aprender na pele: quando a experiência ensina mais que o livro

Mais do que entender teorias ou técnicas, os estudantes relataram que a psicoterapia pessoal ofereceu um tipo de aprendizado que só a vivência pode proporcionar – aprendizagem através da experiência. Estar no lugar de paciente os ajudou a perceber como se sentem aqueles que procuram ajuda — suas angústias, resistências, medos e esperanças. Essa experiência foi descrita como uma espécie de laboratório emocional, no qual foi possível experimentar o que significa confiar em alguém, revelar-se, sentir-se acolhido e lidar com situações difíceis.

Essa aprendizagem experiencial não substitui o conhecimento teórico, mas o complementa e o torna mais real. Os participantes afirmaram que, depois de viverem a psicoterapia pessoal, passaram a compreender melhor os conteúdos discutidos nas aulas — agora não apenas com a mente, mas com de modo integral.

O que o estudo nos ensina

Se você é estudante ou profissional da Psicologia, talvez já tenha se perguntado: “Preciso fazer psicoterapia para ser um bom terapeuta? ” Essa pesquisa sugere que a resposta, embora não obrigatória, pode ser sim — pelo menos se você deseja exercer a profissão com mais consciência, profundidade e humanidade.

O estudo mostrou que estar em psicoterapia ajuda o futuro psicólogo a reconhecer seus próprios limites, a manejar melhor as emoções despertadas pelos atendimentos e a se posicionar com mais ética e responsabilidade diante do sofrimento alheio.

O tratamento pessoal para o psicólogo que vai exercer psicoterapia é parte essencial da sua formação. A experiência da psicoterapia pessoal permite que futuros psicólogos conheçam seus próprios pontos cegos, compreendam os limites da escuta e enfrentem os obstáculos que podem, sem querer, interferir na clínica. E talvez seja justamente esse percurso de cuidado e coragem que torne um psicólogo verdadeiramente capaz de acolher o sofrimento alheio.

Referência

Kichler, G. F., & Serralta, F. B. (2014). As Implicações da Psicoterapia Pessoal na Formação em Psicologia. Psico, 45(1), 55–64. https://doi.org/10.15448/1980-8623.2014.1.12531

Sou psicoterapeuta psicodinâmica de adultos e adolescentes há 30 anos. 

Tenho ampla experiência no atendimento de problemas emocionais e de relacionamento, tanto em psicoterapia breve como de longo prazo. 

Realizei formação em psicoterapia psicanalítica no Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia (IEPP-RS). 

Sou Mestre em Psicologia Clínica (PUCRS), e Doutora em Ciências Médicas: Psiquiatria (UFRGS). 

Há decadas, além da prática clínica, atuo também como professora e pesquisadora em psicoterapia. 

Fui uma das pioneiras no estudo da psicoterapia on-line no Brasil. 

Como terapeuta, minha prática é ajustada a cada paciente, sustentanda em evidências científicas e culturalmente sensível.